MDB: restabelecendo a verdade
“O PT é um
dos construtores, senão o principal, do Estado de Direito que hoje vivemos
aqui. A começar pela derrubada da ditadura”. O autor dessa monumental e
inverídica agressão à história é o jornalista e professor universitário Eugênio
Bucci, em “O Estado de S.Paulo” (29-11-2012). Não se trata de um escriba de
aluguel, mas de um intelectual respeitável. Diz mais: “Foram as greves do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernando do Campo, lideradas por Lula, que puseram
contra a parede o aparato repressivo do regime militar, forçando o recuo
definitivo.” Avança com enorme criatividade: “Mais tarde, a campanha por
eleições Diretas-Já, que levou milhões de cidadãos às ruas em 1984, tinha José
Dirceu na organização logística de todo o movimento”.
As três
afirmações são mistificadoras, numa reinterpretação de acontecimentos
históricos, onde os verdadeiros personagens da luta de 21 anos para
redemocratizar o Brasil, são executados sem nenhuma piedade. “O Estado de Direito
que hoje vivemos” teve na ampla frente democrática reunida no MDB (Movimento
Democrático Brasileiro) a sua fundamental estrutura. Prisões, perseguições,
cassações, exílios e mortes, ao longo de década e meia, marcaram a vida dos
seus militantes. Líderes na Câmara, à exemplo de Mario Covas (1969) e Alencar
Furtado (1977), foram sumariamente cassados pelo Ato Institucional nº 5.
Parlamentares como Marcio Moreira Alves, Lisâneas Maciel, Hermano Alves e
tantos outros, para sobreviver, buscaram o caminho do exílio. Mas a luta política
nunca esmoreceu. O saudoso Ulysses Guimarães, a cada revés, reagia: “O MDB é
como clara de ovo, quanto mais bate, mas ele cresce”.
Em 1970, a
criação pelo valente Chico Pinto do grupo dos autênticos, imprimiria o
enfrentamento direto com a ditadura. Em 1974, em plena vivência do chamado
“milagre econômico”, o MDB elegia 16
senadores e mais de 180 deputados federais. O grito de liberdade, que estava
preso na garganta, se manifestava pela via eleitoral. O governo Geisel, após patrocinar
centenas de prisões, entendeu o recado das urnas e anunciou a transição “lenta
e segura”. No final do seu governo revogou o draconiano Ato Institucional nº 5.
Chico e Gil, na música “Cálice”, proclamavam: “De tão gôrda a porca já não
anda/ de tão usada a faca já não corta”. O enfraquecimento da ditadura era
real.
Nas eleições
de 1978, o MDB ampliou as suas bancadas na Câmara. No Senado, o governo
reservou 1/3 das cadeiras para o senador biônico, garantindo a sua maioria. Em
1979, o Congresso Nacional aprovava a lei da Anistia e restabelecia as eleições
diretas para os governos estaduais.
Afirmar que
“as greves, lideradas por Lula, forçaram o recuo definitivo” é ficção da pior
qualidade. O PT foi criado em 1980, quando o caminho da redemocratização já era
fato admitido pelos setores lúcidos do próprio autoritarismo. Afirmar ser o PT
o principal responsável pela edificação do Estado de Direito chega a ser
risível. Nas eleições diretas de 1982, o MDB elegeu os governadores: Franco Montoro, São Paulo; Tancredo Neves,
Minas; José Richa, Paraná; Gerson Camata, Espírito Santo; Iris Rezende, Goiás;
Jader Barbalho, Pará; Gilberto Mestrinho; Amazonas; e o PDT, Leonel Brizola, no
Rio.
Em 1983, o
deputado Dante Oliveira apresentou emenda constitucional restabelecendo
eleições diretas para Presidente da República. Simbolizaria o inicio do fim da
ditadura. Em 1984, quando seria votada no Congresso, teve início a
extraordinária mobilização da sociedade brasileira. Aqueles governadores
eleitos pela oposição assumiram a linha de frente. O primeiro grande comício
foi em Curitiba em janeiro de 1984. Logo depois, São Paulo e Rio de Janeiro
levaram às ruas milhões de brasileiros. O PT havia eleito em todo o Brasil,
seis parlamentares, liderados pelo amigo e extraordinário deputado Airton
Soares, que tanta falta faz à vida política brasileira. Expulso do partido por
votar em Tancredo Neves no colégio eleitoral.
Agora, de
acordo com Eugênio Bucci, “a campanha por eleições Diretas-Já, que levou
milhões de cidadãos às ruas em 1984, tinha José Dirceu na organização logística
de todo o movimento”. Parlamentar, vice-líder e dirigente do PMDB à época,
atesto a falsidade da afirmação. Ulysses Guimarães foi o principal condutor
daquela epopeia histórica, sendo chamado pelo povo de “Senhor Diretas”. Tendo
naqueles governadores, especialmente, Montoro, Tancredo, Richa e Brizola,
lideranças responsáveis pelo êxito mobilizador dos milhões de brasileiros que,
perdendo o medo, saíram às ruas para decretar o sepultamento do Estado
ditatorial.
O
restabelecimento do Estado de Direito, não foi uma luta de facções políticas,
mas o despertar democrático dos brasileiros conscientes, vilipendiados e
amordaçados pela ação civil-militar daqueles que se achavam intocáveis na
manutenção dos seus privilégios. Reinterpretar fatos históricos indiscutíveis, por conveniência, é autoritarismo inqualificável.
Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela
Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi Deputado Federal (1978-1991). É
autor de vários livros sobre a economia brasileira.
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