O velho Cordeiro, com todo o respeito, pareceu-me um defunto de primeiríssima



















“Não se tira o sapato antes de chegar ao rio. Nem se vai ao Rubicão para pescar”
Tancredo Neves


De repente, o senador Tancredo Neves submergiu no mar de cabeças e braços, voltou à tona meio metro além, repetiu a manobra e ganhou duas ou três posições no cortejo que acompanhava o sepultamento do marechal Oswaldo Cordeiro de Farias. Eu o seguia a três corpos de distância quando aquele mineiro baixo, calvo e com o nariz arrebitado resolveu apressar o avanço rumo ao alvo situado duas fileiras atrás da comissão de frente formada por parentes do morto. Era um homem com cabelos brancos, óculos de quem lê o dia inteiro e cara de professor de matemática que reprova todo mundo.
Vou cortar caminho, decidi. Saí da alameda principal do Cemitério São João Baptista por um corredor à esquerda, virei à direita num mausoléu de mármore preto, violei três túmulos rasos com passadas ligeiras, dobrei à direita de novo num jazigo familiar de tamanho médio e cheguei lá. Chegamos: no instante em que me coloquei à frente do general Golbery do Couto e Silva, Tancredo alojou-se à esquerda do chefe da Casa Civil do presidente João Figueiredo.
Na tarde de 17 de fevereiro de 1981, Golbery estava lá para o enterro de Cordeiro de Farias. Tancredo estava lá para dizer alguma coisa a Golbery, presumi. Eu estava lá para ver no que dava. “Se o defunto é de primeira, não se perde o enterro”, ouvi meu pai prefeito dizer um monte de vezes. ”Primeiro, porque todo mundo vai. Segundo, porque quando todo mundo vai a um mesmo lugar alguma coisa acontece”. O velho Cordeiro, com todo o respeito, pareceu-me um defunto de primeiríssima.
E alguma coisa acontece mesmo. Estava para acontecer, por exemplo, uma conversa em voz baixa entre o articulador político do governo e o chefe da oposição moderada. Só eu ouviria aquilo. E eles nem vão notar que estou ouvindo, pensei sem olhar para trás. Ouvi a troca de cumprimentos formais. E então começou o toque de silêncio.
É agora, excitei-me quando foi morrendo o último sustenido, pronto para registrar o diálogo histórico:
─ Excelente corneteiro ─ começou Tancredo.
─ Muito bom ─ concordou Golbery.
Pausa de três minutos.
─ Foi um prazer encontrar-me com o senhor ─ surpreendeu-me Tancredo com a abrupta despedida.
─ O prazer foi todo meu ─ retribuiu Golbery.
─ Precisamos conversar ─ disse o senador estendendo a mão.
─ Precisamos, sem dúvida ─ encerrou o general apertando a mão estendida.
Não acredito, espantei-me ao constatar que o diálogo histórico fora substituído por um monumento à banalidade feito de seis frases. O deputado Thales Ramalho me contara que Tancredo e Golbery andavam se encontrando com frequência para conversas sigilosas em que tratavam de tudo. O que havia acontecido no cemitério? Viram algum suspeito nas cercanias? Identificaram algum espião? O que houve no dia do enterro?
Hoje vou saber, resolvi naquela noite de novembro de 1984, enquanto me sentava à mesa do restaurante em Belo Horizonte para a primeira conversa a dois com Tancredo Neves. Governador de Minas desde o ano anterior, já estava em marcha acelerada para a vitória no colégio eleitoral que, em janeiro de 1985, elegeria o sucessor do presidente Figueiredo. Ele havia topado falar sobre os bastidores da campanha.
─ Também gostei daquele corneteiro do enterro do Cordeiro de Farias ─ comecei.
Ele pareceu não entender nada.
─ O senhor até elogiou o corneteiro pro Golbery.
─ Não me lembro disso ─ ouvi. ─ Nem do corneteiro nem do encontro com o general Golbery.
Achei melhor mudei de assunto antes que dissesse que também não foi ao enterro de Cordeiro. Só no fim do jantar ele contou que lembrava de tudo. Queria apenas conferir se eu tinha mesmo testemunhado o parecer sobre o toque de silêncio. Em desconfiava disso desde o aperitivo, quando ficou claro que ele estava com muita vontade de comer, de beber e de falar. Driblou o caso do corneteiro, mas matou no peito o assunto seguinte.
Por que não se entusiasmara com a campanha das diretas-já?, quis saber. Nunca acreditou que pudesse dar certo? Sempre achou que era uma coisa lírica, repetiu. Participou de vários comícios, mas se dependesse dele a campanha nem começaria.
─ Os militares não estavam prontos para aceitar que o presidente fosse escolhido pelo voto direto. Achei que seria perda de tempo. Não se tira o sapato antes de chegar ao rio.
Em contrapartida, esbanjava entusiasmo desde o primeiro dia do duelo contra Paulo Maluf, que seria decidido por um colégio eleitoral majoritariamente governista. Por que a mudança brusca de comportamento? Porque havia chegado ao Rio, respondeu. E então ouvi a frase que, conjugada com a anterior, resumia o estilo do Doutor Tancredo:
─  Não se vai ao Rubicão para pescar.
Aquele jantar prometia.
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/secao/bau-de-presidentes/

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