Infância - Sem Peixe MG



Recordo com largo sorriso dos meus momentos de infância, fui um felizardo, nasci e passei meus 12 primeiros anos no meu sagrado Sem Peixe-MG. Vivemos praticamente 90% dos nossos dias, eu e meus irmãos, principalmente o Helinho, Zé Pedro e este peão, do lindo xadrez que é nossa família, no sítio do vôzinho - Dedé Barcelos - ao seu lado, da vózinha, Tia Julita, Tio Antônio e Tio Luiz, que infância.
Dormíamos quase todos os dias no sítio, se não dormíamos íamos durante o dia, distante da vila uns 3 km, andávamos com os pés descalços, independente se chovia, fazia sol, se era de dia, ou à noite, tão pouco a companhia com que íamos, o importante era, nossa vida era o sítio do vôzinho.
Para ir era mais fácil, atravessávamos a ponte do rio Sem Peixe, na Donaria virávamos à esquerda, em seguida nossa primeira dureza, subir em dois lances, o morro do tio Jiló, se fosse de dia, gritávamos, benção tio Jiló, e ele com sua precata, sempre com um balde à mão, sorria, levantava o chapéu e respondia;
- Deus os abençoem meus filhos.
Fazíamos uma descidinha e virávamos no bambuzal, sagrado bambuzal, de refrescante sombra, quantas vezes sentamos àquela sombra, andávamos uns 50 metros e passávamos na baixadinha da casa do tio Miguel Schittini, o italiano, que tinha os dentes mais bonitos, mas também, ele só escovava os dentes com bicarbonato. Aí vinha a cachorrada, os gansos, os patos, mas nunca tínhamos medo. Passada a baixada, vinha a segunda dureza, apesar de outro delicioso bambuzal, outra subida, ainda mais íngreme, e o pior vários pontos de riscos para nós.
O primeiro, sempre tinha uma água escorrendo no morro, aquilo deixava as pedras escorregadias, quantos escorregões, quanta cabeça de dedo ficou naquele morro.
O segundo, tio Miguel sempre tirou bastante leite, tinha muitas vacas, e sempre tinha alguma com bezerro novo, na maioria da raça Gir, e vaca Gir de bezerro novo é um Deus nos acuda, e quantas vezes quando estávamos chegando na cabeceira do morro, descíamos na maior correria, uma vaca berrando pelo seu bezerrinho vinha em disparada, e pular ou passar por baixo da cerca era uma arte, uma dificuldade, as cercas em Minas é feita com arame farpado, o certo é que nos escondíamos para a vaca desenfreada passar, com seus estonteantes berros, seus peitos enormes, jorrando leite, era uma farra, com muito aperto.
Alcançado o alto do morro do tio Miguel, tínhamos uma moleza, descidinha, passávamos em um riacho com água gelada, e íamos até a porteira do tio Roão, ou passávamos pelo atalho, que nos economizava uns 400 metros de caminhada.
Qualquer que fosse a opção era a parte mais cansativa, era uma reta de uns mil metros, para nós, crianças de 4, 5 e no final 12 anos, era longe, e só tinha uma sombra, uma linda árvore, que na primavera floria belas flores amarelas, acho que era um Ypê.
Passado a reta do tio Roão, tinha uma curva perigosa, para carro, tio Chico boi quase morreu ali, foi salvo por São  Sebastião, senão teria caído lá no bambuzal do tio Roão, na casa dele. Passado a curva, tinha uma reta e outra subida, pesadinha para nós, mas maravilhosa, ali muitas vezes ficávamos parados ouvindo o barulho da cachoeira - quantos banhos - e ficávamos ali gritando para ouvir nossos ecos, vencida a subidinha, tínhamos a imagem mais linda de nossas vidas, a casa do vôzinho.
Ai, indubitavelmente saíamos em disparada, quem chegasse por último na porteira seria mulher do padre. Apesar de nunca ter sido mulher do padre, eu sempre perdia. Perdia para o Zé Pedro ou perdia para o Helinho, ou perdia para os dois quando estávamos os três. Mas ganhava deles quando era para fazer uma lutinha de derrubar, sempre os derrubava, só perdia para o Helinho se fosse para lutar no soco, o cabra não tia dó de dar murros, eu e o Zé Pedro tínhamos dó dele, e perdíamos.
Passada a porteira, uns 200 metros tinha o córrego, que água deliciosa, do córrego até a casa uma subida de uns 100 metros, mas como demorávamos. Eram as goiabeiras, eram as brincadeiras, só sei que aquela subida era uma eternidade, tanto na ida, quanto quando voltávamos, nunca queríamos voltar, e aqueles metros para nós era uma eternidade. Chegamos no terreiro, aí ou tinha uma vaca brava berrando pelo bezerro novo, ou passávamos tranquilhos entre as vacas, eramos amigos de todas e sabíamos seus nomes, quantos litros davam, quais eram seus bezerros e enfim, chegávamos ao nosso Céu.
Vôzinho, Vózinha, Tia Julita, Tio Antônio, Tio Luiz, nossos anjos, nosso paraíso, nosso porto seguro, benção, e dali para frente, brincadeiras, tarefas, muita comida e a vózinha com seu avental, cabelo enrolado - a vida inteira enrolou seu cabelo - coberto por um lenço.
Biscoito de polvilho, broa, leite queimadinho, feijão tropeiro, ovinho frito, guizadinhos, farinha de milho torrado, queijo assado no fogão à lenha, linguiças penduradas no fogão defumando, escorpião, rapadura, ralar mandioca para fazer polvilho, moinho de milho e milhares de banhos em seu canal, goiaba, laranja, mexerica, carrapatos, bichos de pé, varrer terreiro, tratar das dezenas de porco, pegar os leitõezinhos, descascar milho, debulhar milho, brincar de boi de sabugo de milho, jogar bola no terreiro, tratar das galinhas, águar a horta.
Que vida!
Que infância!
Como Deus foi tão bom para todos nós.
Obrigado!

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