"Escolher o adversário às vezes é muito mais importante que escolher o aliado"
Tancredo Neves


Todo mundo sabe que Tancredo Neves sempre foi bastante cauteloso, lembro ao ouvi-lo dizer que não se deve tirar o sapato antes de chegar ao rio. O Tancredo que nunca vai ao Rubicão para pescar pouca gente conhece. Boa imagem essa, penso no primeiro aperitivo. Fico imaginando um chefe político jogando o anzol no rio nos limites de Roma que Júlio César atravessou, sem pedir licença, para tomar o poder.
─ De alguns rios o melhor é ficar longe ─ diz o doutor Tancredo depois de pedir tutu à mineira.
É o desfecho da aula fluvial, avisa o tom de voz. Peço o mesmo prato e um exemplo.
─ Fiquei fora do barco do Hugo Abreu ─ começa a contar a história que é a cara de Tancredo Neves.
Em 1978, parlamentares do MDB, entre eles o deputado Ulysses Guimarães, acharam muito boa a ideia de apoiar a candidatura de um militar disposto a enfrentar no Colégio Eleitoral o general João Figueiredo, já escolhido pelo presidente Ernesto Geisel. Conduzidas pelo general Hugo Abreu, ex-chefe da Casa Militar de Geisel, as articulações envolvendo dissidentes fardados resultaram na escolha do general Euler (pronuncia-se Óiler) Bentes Monteiro. O que Tancredo achava da ideia?, foram perguntar-lhe alguns deputados.
─ O Hugo Abreu não é oficial paraquedista?
Esse mesmo, ouviu.
─ Pois se eu paro, olho e medito antes de descer um degrau, como é que vou me juntar com um camarada que se joga de um avião lá do céu e sem ter asas? ─ encerrou Tancredo, que ficou fora do barco e do fiasco.
Esse episódio é mesmo a cara dele, quero ver como é a outra. Quando foi que cruzou o Rubicão pela primeira vez?
─ Na última reunião do ministério do Getúlio ─ informa o sotaque de São João del Rey.
Em 1953, o advogado Tancredo de Almeida Neves, ex-vereador e ex-deputado estadual, exercia o primeiro mandato de deputado federal, na bancada do  PSD, quando se tornou ministro da Justiça do governo constitucional de Getúlio Vargas. Tinha 44 anos na noite de 23 de agosto de 1954, quando a sala de reuniões do Palácio do Catete se transformou no leito de um Rubicão. Além de Oswaldo Aranha, foi o único ministro a defender a resistência a qualquer custo.
─ Fiquei muito impressionada com a coragem e a lealdade do Tancredo ─ ouvi de Alzira Vargas meses antes do jantar em Belo Horizonte. ─ Ele insistiu na prisão dos generais rebelados e na decretação do estado de sítio.
Possessa com a tibieza dos ministros militares, a filha e secretária de Getúlio, que entrara na sala sem pedir licença, acusou-os de covardia e, depois, de traição.
─ Ainda acho que a história do Brasil seria outra se papai concordasse em resistir ─ ouvi Alzirinha dizer.
─ Também acho ─ ouço Tancredo dizer depois de contar-lhe o que tinha dito a sua velha amiga. ─ O que houve já no dia do suicídio provou que o doutor Getúlio tinha o apoio do povo.
A primeira travessia se completou com o vigoroso discurso de despedida em São Borja, aquecido por ataques violentos aos novos donos do poder. Quem decidiu que Oswaldo Aranha e ele discursariam ao lado do túmulo?
─ Ninguém. Todos estavam muito comovidos, ninguém tinha cabeça para organizar listas de oradores.
O discurso, bonito e muito bem costurado, não parecia inteiramente improvisado. Como é possível falar aquilo tudo de sopetão, sem aquecimento mental, sem nenhum preparativo?
─ O coração falou por mim.
O doutor Tancredo é craque em  frases de efeito, mas achei fraquinha essa do coração falando por ele. Ele também achou, desconfio quando ele chama o garçom, pede uma segunda dose de uísque, volta a 1983 e diz que está de novo atravessando o rio perigoso.
─ Vou vencer ─ murmura.
A aliança entre a MDB e governistas convertidos à oposição tão forte assim? Enquanto confirma com movimentos de cabeça, ele começa outra lição.
─ Não há como perder do Paulo Maluf. É o adversário que eu queria. Escolher o adversário às vezes é muito mais importante que escolher o aliado.
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/secao/bau-de-presidentes/

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